Publicado em: 18 /03/25 às 9h
A formação em esquizoanálise não é um simples aprendizado técnico ou um percurso acadêmico tradicional. Antes, é um movimento de desformatação das subjetividades aprisionadas, uma experiência que ultrapassa a ideia de uma formação convencional. Trata-se de um deslocamento das formas fixas do desejo, do corpo e do pensamento.
A esquizoanálise não busca criar um profissional padronizado, mas sim abrir caminhos para que cada indivíduo construa linhas de consistência e coesão próprias, desatreladas de sistemas normativos.
A prática esquizoanalítica não se reduz a uma profissão clínica, nem a um meio de sustento. Ainda que isso possa ocorrer legitimamente, sua proposta vai além: é uma questão ética e política que envolve um gosto pela vida ativa e afirmativa.
Envolve um estilo de vida, um modo de estar no mundo que não se baseia na crença em outros mundos ou ideais, mas sim na potência do acontecimento e na confiança na vida. Sem essa confiança, não há impulso criativo, não há diferenciação, não há movimento.
A esquizoanálise ensina a extrair de cada acontecimento seu caráter inesgotável.
O passado, longe de ser uma prisão de marcas e palavras fixadas, deve ser lido como um campo de potência, como memória do futuro. Aprender a lidar com esses "seres de tempo" significa abandonar a repetição do mesmo e abraçar a repetição do diferente, onde cada acontecimento pode ser transmutado de maneira singular.
Assim, a vida não é essencialmente boa ou má, mas se torna aquilo que fazemos dela.
A qualidade da experiência depende de como nos implicamos nos acontecimentos, de como assumimos a responsabilidade por nossas quedas e transformamos cada tropeço em um novo impulso. Esse compromisso com a vida implica uma micropolítica do desejo.
Como dizia Nietzsche, a grande política é, na verdade, uma grande saúde: um modo de existência que assume uma responsabilidade ética e estética diante do mundo. Não se trata de moralidade ou de submissão a uma estética normativa, mas de uma postura que fortalece a diferença, que não explora, não esmaga e não entristece a vida.
A esquizoanálise nos ensina a eliminar a inveja, o ciúme e as disputas estéreis, substituindo-os por jogos de potência, onde o encontro com o outro é sempre um estímulo para lançar a flecha ainda mais longe. A clínica, nesse sentido, não pode ser um espaço de mero acolhimento passivo.
O esquizoanalista não vê o outro como um coitado a ser ajudado, mas como um aliado em potencial. Um deprimido não é alguém sem desejo, mas alguém cujo desejo está capturado. A função da clínica é introduzir dispositivos que permitam a emergência dessas forças latentes, criando condições para que o paciente se torne um agente de sua própria transformação.
O esquizoanalista não vê o outro como um coitado a ser ajudado, mas como um aliado em potencial. Um deprimido não é alguém sem desejo, mas alguém cujo desejo está capturado. A função da clínica é introduzir dispositivos que permitam a emergência dessas forças latentes, criando condições para que o paciente se torne um agente de sua própria transformação.
Como em um trabalho arqueológico, trata-se de escavar, descamar, desestratificar, até que a potência aprisionada possa emergir. O objetivo final não é manter o indivíduo na condição de paciente, mas levá-lo à posição de atuante, de guerreiro de sua própria existência.
Não há uma autoridade que legitime ou certifique um esquizoanalista, pois não se trata de um sistema, uma escola ou uma doutrina. O que importa não é um título ou uma chancela institucional, mas a potência efetiva do que podemos fazer.
A esquizoanálise não é um refúgio para quem busca uma alternativa de sobrevivência profissional, mas um caminho para aqueles que desejam reinventar a vida, subverter padrões normativos e explorar novas possibilidades de existência.
Ser esquizoanalista é, portanto, assumir uma postura visionária, mas não no sentido de impor uma visão aos outros.
Pelo contrário, trata-se de ajudar cada um a descobrir sua própria visão, a criar suas próprias linhas de fuga, a ativar suas potências. Não queremos seguidores, queremos companheiros de jornada, aliados na construção de uma vida mais vibrante e afirmativa.
A verdadeira liberdade surge quando nos tornamos visionários do que nos fortalece e singulariza, quando deixamos de repetir o mesmo e passamos a reinventar o mundo a partir do que podemos e desejamos. A esquizoanálise é um convite para essa experiência radical de criação e transformação.
Há uma diferença de natureza do cuidado com a saúde mental operado pela Esquizoanálise e pelas outras práticas psis e teorias psis.
Isso não significa que a Esquizoanálise não se sirva de conquistas da psiquiatria, das psicologias, das psicanálises. Não é disso que se trata. Não é um desprezo a essas ciências, mas há um combate, há um ponto de combate onde não dá para conciliar.
Qual é o ponto de combate essencial? Nós não podemos fazer concessão nesse sentido! O ponto de combate é quando as ciências e práticas psis se tornam funcionárias de estado, funcionárias de um estado que está a serviço de uma máquina social.
De uma máquina social que não concebe e não tolera a vida senão no seu modo rebaixado de existir, senão no seu modo desqualificado. Daí a insurgência da Esquizoanálise como uma máquina de guerra.
Publicado em: 17/03/25 às 10h
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A Esquizoanálise não é uma mera crítica reformista às ciências psis, às práticas psis dominantes — sejam elas vindas da psiquiatria, oriundas da psiquiatria, oriundas das psicologias, oriundas da ou das psicanálises.
A Esquizoanálise nasce como uma crítica radical, sim, contra especialmente a psicanálise, mas não no sentido de jogar fora tudo o que a psicanálise eventualmente tenha conquistado e trazido de interessante para um modo de vida nômade, para um pensamento afirmativo, para um modo de vida ativo.
Então só à medida que a psicanálise foi se convertendo numa máquina de adaptar as vidas a relações de sociabilidade que estão levando cada vez mais a vida humana para uma decadência, é que a Esquizoanálise se insurge contra a psicanálise.
Mas a Esquizoanálise, acima de tudo, é uma maneira de viver, é um modo de vida, um modo de sentir, de agir e de pensar diferentes, nômades. Diferente no sentido de que não se apoia em nenhuma instância transcendente da realidade, em nenhum centro — seja de saber, seja de poder —, ao contrário, ela busca encontrar o ser comum a tudo o que é e tudo o que existe sob o ponto de vista de uma distribuição nômade do real.
Publicado em: 16 /03/25 às 21h
A Esquizoanálise busca a reconexão com o real, da nossa vida com o real, do nosso desejo com a sua potência, do reencontro com as nossas forças.
Forças que nem sabemos mais quais são e que não acessamos mais, em virtude do nosso próprio modo de vida. E, claro, junto com o nosso modo de vida, com o investimento de uma máquina social que é sustentada por esse modo de vida.
A Esquizoanálise é uma análise sobretudo do desejo. E uma análise do desejo no sentido spinozista. O que a gente quer dizer com isso? Spinoza vai dizer, no Livro III da Ética, que a essência humana, ora ele diz que é um conatus, ora ele diz que esse conatus é o próprio desejo. E é um desejo que necessariamente se efetua, que necessariamente se preenche. Se preenche do quê? Dos encontros que esse modo de existir faz, no encontro com outras potências, no encontro com outras forças. Esse modo de existir necessariamente se preenche, ele necessariamente está em acontecimento.
O acontecimento é o objeto do desejo, e não um outro, uma outra coisa, um objeto exterior. O próprio acontecimento, então não há desejo que não esteja em acontecimento — mesmo quando tá separado do que pode. A Esquizoanálise já parte desse princípio de que não há desejo que não esteja sendo preenchido. E, ao mesmo tempo que esse desejo… Por exemplo, em Spinoza, se iguala à potência… A potência não é um sujeito, a potência não é uma identidade, a potência não é um ser, a potência não é uma mente. A mente também efetua a potência, o corpo também efetua a potência, a potência é anterior à mente e ao corpo. Ao mesmo tempo, mente e corpo efetuam essa potência, diferenciam essa potência.
A mente é uma multiplicidade que opera a diferenciação do desejo, e o corpo é outra multiplicidade que opera a diferenciação do desejo. E aquilo que acontece à nossa capacidade de existir, a essa potência em ato, que seria uma capacidade correspondente a essa potência? O que acontece é uma variação dessa capacidade. Essa variação chama-se “campo afetivo”.
Então o desejo também se efetua pelo campo afetivo. Há, no mínimo então, três regiões de nós mesmos que efetuam o nosso desejo. E a Esquizoanálise trabalha no mínimo com essas três regiões. Mais do que isso, ela trabalha também com a maneira de se efetuar nas relações, com a maneira de se conectar, com modo como a gente se relaciona e, sobretudo, com o modo como a gente registra o tempo, com o modo como a gente produz memória — porque sem memória não há experiência.
A experiência implica uma condição de continuidade e, portanto, a Esquizoanálise trabalha, no mínimo, nesses quatro campos simultaneamente. Fundamentalmente, esse último campo que eu nomeei como “registro e produção de memória” implica um uso do tempo. E, sobretudo, o desejo é uma linha de tempo. Nós somos linha de tempo. Nós somos feitos do estofo do tempo, de seres de tempo. E esses seres de tempo é que constituem o nosso ser de potência.
A Esquizoanálise busca a reconexão com o real, da nossa vida com o real, do nosso desejo com a sua potência, do reencontro com as nossas forças.
Nós somos, na essência, um ser de potência que se atualiza necessariamente. É sempre uma potência em ato, e não uma potência que precisa de uma causa exterior para se efetuar. A causa de efetuação dessa potência está já na própria passagem da existência, na própria zona de passagem que é o existir, que é o viver. Então essa causa é imanente. E , se é uma causa de realização imanente do desejo, essa potência é em ato.
Forças que nem sabemos mais quais são e que não acessamos mais, em virtude do nosso próprio modo de vida. E, claro, junto com o nosso modo de vida, com o investimento de uma máquina social que é sustentada por esse modo de vida.
A Esquizoanálise é uma análise sobretudo do desejo. E uma análise do desejo no sentido spinozista. O que a gente quer dizer com isso? Spinoza vai dizer, no Livro III da Ética, que a essência humana, ora ele diz que é um conatus, ora ele diz que esse conatus é o próprio desejo. E é um desejo que necessariamente se efetua, que necessariamente se preenche. Se preenche do quê? Dos encontros que esse modo de existir faz, no encontro com outras potências, no encontro com outras forças. Esse modo de existir necessariamente se preenche, ele necessariamente está em acontecimento.
O acontecimento é o objeto do desejo, e não um outro, uma outra coisa, um objeto exterior. O próprio acontecimento, então não há desejo que não esteja em acontecimento — mesmo quando tá separado do que pode. A Esquizoanálise já parte desse princípio de que não há desejo que não esteja sendo preenchido. E, ao mesmo tempo que esse desejo… Por exemplo, em Spinoza, se iguala à potência… A potência não é um sujeito, a potência não é uma identidade, a potência não é um ser, a potência não é uma mente. A mente também efetua a potência, o corpo também efetua a potência, a potência é anterior à mente e ao corpo. Ao mesmo tempo, mente e corpo efetuam essa potência, diferenciam essa potência.
A mente é uma multiplicidade que opera a diferenciação do desejo, e o corpo é outra multiplicidade que opera a diferenciação do desejo. E aquilo que acontece à nossa capacidade de existir, a essa potência em ato, que seria uma capacidade correspondente a essa potência? O que acontece é uma variação dessa capacidade. Essa variação chama-se “campo afetivo”.
Então o desejo também se efetua pelo campo afetivo. Há, no mínimo então, três regiões de nós mesmos que efetuam o nosso desejo. E a Esquizoanálise trabalha no mínimo com essas três regiões. Mais do que isso, ela trabalha também com a maneira de se efetuar nas relações, com a maneira de se conectar, com modo como a gente se relaciona e, sobretudo, com o modo como a gente registra o tempo, com o modo como a gente produz memória — porque sem memória não há experiência.
A experiência implica uma condição de continuidade e, portanto, a Esquizoanálise trabalha, no mínimo, nesses quatro campos simultaneamente. Fundamentalmente, esse último campo que eu nomeei como “registro e produção de memória” implica um uso do tempo. E, sobretudo, o desejo é uma linha de tempo. Nós somos linha de tempo. Nós somos feitos do estofo do tempo, de seres de tempo. E esses seres de tempo é que constituem o nosso ser de potência.
Essa potência não é uma possibilidade. Essa potência é uma realidade. Isso é muito diferente e isso faz toda a diferença em relação às ciências psis e às práticas psis, porque nós não concebemos o desejo senão a partir do seu plano de imanência, ou seja, o desejo está sempre preenchido. Ele sempre se efetua. Agora, daí vem uma diferenciação. Existem no mínimo duas maneiras do desejo se efetuar: a maneira ativa e uma maneira passiva.
Na maneira passiva, nós experimentamos o desejo como aquele que carece de objeto. Na maneira passiva, nós experimentamos o desejo como aquele que tem que se tornar sujeito.
E então a Esquizoanálise se diferencia radicalmente das outras ciências e práticas psis, por quê? Porque nós nós não buscamos investir um sujeito para assujeitar o desejo, e nem buscamos encontrar o objeto desse desejo para que ele se satisfaça com o prazer. A Esquizoanálise busca reencontrar a potência do próprio desejo, para que o desejo se torne ativo, para que a gente se preencha de afetos ativos.
Nós somos, na essência, um ser de potência que se atualiza necessariamente. É sempre uma potência em ato, e não uma potência que precisa de uma causa exterior para se efetuar. A causa de efetuação dessa potência está já na própria passagem da existência, na própria zona de passagem que é o existir, que é o viver. Então essa causa é imanente. E , se é uma causa de realização imanente do desejo, essa potência é em ato.
Essa potência não é uma possibilidade. Essa potência é uma realidade. Isso é muito diferente e isso faz toda a diferença em relação às ciências psis e às práticas psis, porque nós não concebemos o desejo senão a partir do seu plano de imanência, ou seja, o desejo está sempre preenchido. Ele sempre se efetua. Agora, daí vem uma diferenciação. Existem no mínimo duas maneiras do desejo se efetuar: a maneira ativa e uma maneira passiva.
Na maneira passiva, nós experimentamos o desejo como aquele que carece de objeto. Na maneira passiva, nós experimentamos o desejo como aquele que tem que se tornar sujeito.
E então a Esquizoanálise se diferencia radicalmente das outras ciências e práticas psis, por quê? Porque nós nós não buscamos investir um sujeito para assujeitar o desejo, e nem buscamos encontrar o objeto desse desejo para que ele se satisfaça com o prazer. A Esquizoanálise busca reencontrar a potência do próprio desejo, para que o desejo se torne ativo, para que a gente se preencha de afetos ativos.
Procedimentos, operadores clínicos e dispositivos clínicos não servem apenas para o consultório; a clínica acontece em diversos espaços: na escola, no judiciário, na fábrica, na empresa, e em qualquer lugar onde a vida se manifesta.
O consultório continua sendo fundamental, mas a clínica não se restringe a ele.A clínica atua sobre o modo de viver, e esta não é uma dimensão meramente individual. O modo de vida é sempre relacional, sempre voltado ao outro.
A clínica, portanto, deve ser pensada como um campo de forças, onde a diferença e a composição são fundamentais. A análise, nesse contexto, não visa eliminar a mistura, mas diferenciá-la para compreender suas dinâmicas e potências.
A sociedade constantemente nos captura e nos rebaixa, criando novas formas de sujeição.
A clínica deve ser uma ferramenta de luta contra esses dispositivos de captura, ajudando-nos a compor formas de vida mais potentes e menos submetidas.
Nosso desafio é construir essa clínica expandida, que ultrapassa os limites do consultório e se espalha pelo mundo. Isso significa levar a clínica às escolas, às fábricas, ao judiciário, ao campo social e até ao cosmos.
O consultório não deve ser um espaço fechado, mas um ponto de passagem para outras formas de existência. A clínica deve ser uma intervenção na realidade, atravessando e transformando as formas de vida que nela se encontram.
Publicado em: 15 /03/25 às 16h
A esquizoanálise é uma maneira de viver, uma maneira de agir, de sentir e de pensar que percebe que nós estamos situados numa formação social ou em formações sociais que nos adoecem.
Nós somos adoecidos ao longo da nossa vida, já desde criança, a partir da máquina educacional de ensino, mas antes mesmo da máquina educacional, a partir das máquinas familiares. E a nossa sociedade tem a capacidade de transformar a doença que ela mesma fabrica em matéria de lucro, em mercadoria.
E pior que isso, porque a mercadoria que se torna a saúde, a oferta de saúde, a produção de saúde, é uma mercadoria enganosa, porque essa saúde é uma saúde adaptativa, é uma saúde que nos acomoda, é uma saúde que nos conforta, é uma saúde que nos converte em peças adestradas, docilizadas, do sistema. Então é uma saúde enganosa, é uma falsa saúde.
O pior não é transformar a doença num objeto mercadológico para se vender saúde; o pior é a saúde que é vendida. Daí a necessidade de a gente fazer uma crítica profunda e rigorosa às teorias e às práticas que querem trazer saúde para a sociedade. E, fundamentalmente, essas que envolvem a mente humana e o desejo humano, que são as ciências e práticas psis.
Por isso a Esquizoanálise se torna urgente: porque ela é uma outra maneira de ver, ela é uma outra maneira de abordar, ela é uma outra maneira de diagnosticar. Será que a Esquizoanálise pratica ou produz diagnósticos? Não, a Esquizoanálise mapeia, ela cartografa.
E qual a diferença entre cartografar, mapear e diagnosticar? O diagnóstico geralmente leva para um quadro clínico; o mapeamento mapeia processos ou circuitos de desejo. Processos e circuitos de desejo que são, ao mesmo tempo, investimentos de desejo. Investimentos esses que não acontecem sem a nossa cumplicidade e, dependendo do modo como investimos o desejo, nós temos a vida que merecemos. Há um retorno sobre nós e há uma produção de nós mesmos. Há uma produção de si na medida em que a gente deseja desta ou daquela maneira, na medida em que a gente investe o desejo desta ou daquela maneira.
E essa produção de si pode ser uma produção de subjetividade que nos assujeita; ou poderia ser um investimento em processos singularizantes que libertam o desejo, que liga o desejo à sua potência e ao seu campo de imanência.
A Esquizoanálise sabe que não só é possível, como absolutamente necessário e praticável, reencontrar ou levar, ajudar a conduzir o desejo novamente para seu campo de imanência, e ligá-lo ao que ele pode. Ligar o desejo às nossas próprias forças, ligar o desejo à nossa própria potência. E inventar uma outra maneira de existir. Novas territorialidades existenciais. Novas zonas de passagem, zonas temporárias, autônomas que, na verdade, são afirmadoras das diferenças.
É isso que é o “comum”. O comum é algo que não tem forma, mas que afirma a diferenciação de toda a potência. Então essas zonas autônomas, essas territorialidades existenciais são fundamentais, e a Esquizoanálise investe nessa produção. Na produção de superfície, na produção de zonas de passagem, de zonas de ressonância, de territorialidades existenciais que produzam um comunal que abre mão de um estado, que abre mão do privado, que abre mão dos guetos, que abre mão das raças, que abre mão das classes, que abre mão das propriedades, que não necessita desse modo de recortar o real.
Publicado em: 14 /03/25 às 19h
A esquizoanálise é, nesse sentido, uma máquina de guerra porque ela desconstrói. Ela nos desconstrói como peças dessa máquina e como sujeitos dessa máquina. Ou seja, como prepostos de poder.O aspecto crítico da esquizoanálise, a tarefa crítica da Esquizoanálise é a desconstrução das prisões do corpo, da mente e do desejo; as prisões dos nossos modos passivos, negativos, de viver. Passivos ou reativos de viver e negativos de pensar.
A Esquizoanálise tem esse objeto crítico, mas não porque ela parte do negativo; porque ela já parte, ao contrário, de uma afirmação maior. É essa afirmação maior que faz com que ela, por efeito, exerça a crítica, que por isso mesmo jamais será uma crítica ressentida. Jamais será uma crítica de negação do outro ou de negação da vida, ao contrário: não é uma crítica da vida, é uma crítica dos maus jeitos com a vida.
Então ela é absolutamente libertária e necessária, sobretudo em que momento? Sobretudo nesse momento que nós nos encontramos.
Como dizia Gramsci, nós não vivemos mais uma sociedade bem estruturada e organizada, que supostamente tenha algum dia existido, mesmo no capitalismo. Ou seja, nós estamos vivendo a decadência desses modos modernos e contemporâneos de existir, mas ainda não estamos numa nova formação social, numa nova maneira de existir. Nem precisamos, exatamente, de uma nova formação. Mas o que está por vir? Não sabemos. E os problemas que nos cercam são absolutamente inéditos, e nós olhamos esses problemas com o quê ? Com velhas lentes, com óculos arcaicos, com lentes do passado.
Assim, por exemplo, a crítica que se faz à psicanálise quando a psicanálise e outras ciências psis trazem esquemas interpretativos, sejam complexos, sejam estruturas. Princípios de Interpretação que são princípios estruturais ou formais que se apoiam numa individualidade, ou numa pessoa, ou numa estrutura, quando nós não somos mais indivíduos, nem pessoas, nem estruturas. A vida está num outro momento. Nós já existimos como multiplicidades, mas nos comportamos como se fôssemos encerrados em indivíduos, em sujeitos, em egos.
O Eu, essa construção que julgamos sólida e inabalável, nada mais é do que um fragmento de exterioridade que, aos poucos, infiltra-se em nós. Ele se interioriza, enraizando-se tão profundamente que passamos a tomá-lo como nossa essência mais autêntica. Mas eis a grande sabotagem: somos traídos por aquilo que acreditamos ser nosso verdadeiro Eu.
Nosso maior inimigo não está fora, mas dentro – ou melhor, naquilo que confundimos como sendo "dentro". Por que deixamos isso acontecer? Porque trocamos o fluxo do acontecimento pela fixidez do acontecido.
Publicado em: 13/03/25 às 8h
Cada experiência ganha um nome, uma atribuição, um peso que a define e nos define. Tijolo sobre tijolo, construímos um muro dentro de nós mesmos. Criamos camadas, estratificamos nosso desejo, esburacamos nossa própria potência. E nesse processo, a história que contamos sobre nós se transforma numa prisão.
Queremos respostas definitivas sobre quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Mas, no afã de estruturar uma identidade coesa, perdemos a fluidez do desejo. O Eu, que poderia ser apenas uma passagem, torna-se um fardo. E se, em vez de solidificá-lo, brincássemos com ele? Se aceitássemos sua natureza efêmera, sua vocação para ser ponte, janela, passagem?
O Eu, então, não precisaria mais ser um nome fixo, mas uma intensidade em movimento. Uma expressão de nossa singularidade, livre das amarras da identidade fixa.
Nos espaços terapêuticos, nas clínicas, nos encontros com a psicanálise e a psiquiatria, tantas vezes se busca uma identidade perdida. Mas que identidade é essa? Um conjunto de traços a serem reforçados?
O que estrutura esse Eu senão a separação entre nossa potência e nosso desejo? A linguagem, quando usada de forma subjetivante, nos fixa em identidades rígidas. Criamos significantes, valores, ideais que moldam nossa experiência de maneira limitada.
Mas há outra possibilidade: permitir que a linguagem opere como fluxo, que ela seja passagem, transformação, acontecimento. Precisamos encontrar, no cotidiano, os momentos em que colamos a subjetividade a um ideal fixo, em que vacilamos, nos ausentamos, onde permitimos que o poder se infiltre. Porque onde há ausência da potência, o poder se estabelece.
E o Eu, se tomado como forma rígida, se torna um instrumento dessa dominação.Mas se o Eu for apenas passagem, uma máscara fluida que se dissolve e se refaz, então estamos livres para habitar a multiplicidade.Para sermos, a cada instante, algo novo.
Para não mais sermos sabotados por um Eu que nunca foi nosso, mas sim um eco de vozes externas que nos ensinaram a chamar de identidade o que é, no fundo, apenas movimento.
O desejo é movimento, fluxo, criação. No entanto, ele atravessa zonas de passagem que podem restringi-lo, cristalizando sua força em formas fixas e limitantes.
Mais do que transformações, essas passagens deveriam ser transmutações, mas, enquanto estamos imersos nas primeiras fases desse processo, ainda não compreendemos o que isso significa.
Nos apegamos a limites, não a limiares. O que vivemos e experienciamos ganha um estatuto de forma rígida, e essas formas passam a ocupar o lugar de nossa potência de acontecer.
A primeira passagem se dá exatamente nesse momento: quando um acontecido - um evento, uma experiência, um trauma, uma escolha - se sobrepõe à nossa potência de acontecer.
O fluxo da vida se reduz ao peso do passado. O que deveria ser um impulso criativo se torna um fardo, uma âncora que nos prende. Essa é a queda, o buraco que se abre toda vez que um acontecido ganha primazia sobre o devir.
Publicado em: 12/03/25 às 11h
Com o tempo, esses acontecimentos se empilham, bloqueando a potência do desejo e criando um inconsciente saturado de repetições. Esse é o grande problema crítico e clínico: o desejo de mudança convive com o apego ao que já aconteceu. Um ciclo vicioso se instala.
O olhar de águia, aquele que enxerga além das formas cristalizadas, precisa ser ativado para localizar o ponto exato onde o acontecido tomou o lugar da potência de acontecer. Onde está o desejo? No corpo, nas palavras, nos afetos? Ele se manifesta como estados fixos ou como um fluxo vivo? E quem está produzindo esses estados? Você mesmo.
Aqui entra o dilema: o desejo de mudança existe, mas o medo de largar o conhecido mantém tudo no mesmo lugar. O sujeito quer parar de fumar, sair de uma relação tóxica, mudar de trabalho, transformar sua vida—mas continua alimentando as mesmas condições que sustentam esses estados.
O problema não é apenas desejar a mudança, mas saber como se desconectar do que aprisiona. Caso contrário, o desejo se torna um desejo impotente, sempre projetado para o futuro: "ano que vem eu mudo", "quando eu tiver coragem", mas nunca presente no agora.
Nós assujeitamos o nosso desejo, uma vez que nós buscamos uma saída, uma solução para o nosso modo rebaixado de viver.
E quando a gente busca uma saída pro nosso modo rebaixado de viver, a gente vai investir numa espécie de empoderamento.
E, na medida em que a gente investe no empoderamento, o que se passa? A gente encontra uma compensação ou compensações que nos tornam mais acomodados, aliviados, talvez mais felizes. Mas essa acomodação tem um preço. Ela nos mantém separados da nossa potência. Então mesmo que a gente se empodere, mesmo que a gente conquiste o poder, a gente segue, e talvez de modo ainda pior, de modo ainda mais grave, nessa impotência, buscando compensações. É o que nós chamamos de “segunda captura”.
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